Na gíria portuguesa, os
palitos são a versão económica, e mais moderna, dos cornos. Os cornos, à
semelhança do que aconteceu com os automóveis e os computadores,
tornaram-se demasiado volumosos e pesados para as exigências do homem de
hoje. Daí a crescente popularidade dos mais portáteis e menos onerosos
palitos. Contudo, visto que se vive presentemente um período de
transição, em que os novos palitos ainda se vêem lado a lado com os
tradicionais cornos, continuam a existir algumas sobreposições. Uma
delas, herdada do antigamente, deve-se ao facto dos palitos não se
saldarem numa diminuição proporcional de sofrimento. Ou seja, não dão
uma mera dor de palito -- dão à mesma, incontrovertivelmente, dor de
corno. Não é mais carinhoso, por isso, pôr os «palitos» a alguém --
continua a ser exactamente o mesmo que pôr os outros.
Tudo isto vem a propósito da forma atípica, entre os povos latinos, que
assume o machismo português. Não se trata do machismo triunfalmente
dominador, género «Aqui quem manda sou eu!», do brutamontes que não dá
satisfações à mulher. Não -- o machismo português, imortalizado pelo
fado «Não venhas tarde», é um machismo apologético, todo «desculpa lá ó
Mafalda», que alcança os seus objectivos de uma maneira mais eficaz. É,
de facto, o machismo que, não só dá satisfações, como vive delas.
O machismo português é o machismo, não da força masculina, mas da
fraqueza. Não consiste no homem armar-se em agressor, mas em vítima. O
logro é este: o homem apresenta-se sempre à mulher como vítima da
natureza «de homem», dele. Ser homem, para o machista português, é ser
essencialmente fraco. É um não-ser-capaz de resistir às tentações; um
envergonhado «já sabes como é, filha» que serve para legitimar todos os
privilégios de que goza (aos quais chama «deslizes»). À mulher não se
admitem estes abusos -- os copos, as entradas às tantas da manhã, os
romances -- porque o homem português considera a mulher um ser superior.
Como é superior -- mais forte, mais séria, mais responsável, mais
ajuizada -- não tem, muito simplesmente, direito a nada.
O homem trata-a como se trata um deus. Julga que ela sabe tudo e, mesmo
quando ele lhe mente, sabe que ela não se convence. Pensa também que ele
pode tudo e é daqui que vem o medo enorme que lhe tem. E, tal como se
faz com um deus, ele peca e pede perdão, mas sem perdoar em troca --
porque um deus, por definição, não pode pecar. Se acaso uma mulher não
corresponde a este comportamento divino, é logo considerada uma
desgraçada, uma meretriz, uma sem-vergonha. Em suma: no fundo, uma
criatura tão baixa e desprezível como um homem.
Logo, é a inferioridade do homem -- infinitamente confessada, declarada e
propagandeada -- que lhe impõe o direito de pecar e ser perdoado, e a
superioridade da mulher que lhe confere a obrigação de perdoar. O homem,
no machismo português, é pouco mais que uma pilha imponente e
irresistível de vulnerabilidades. As outras mulheres atraem-no sempre
contra vontade, e ele, coitado, não se consegue defender e vai-se
instantaneamente abaixo. Como cantava o Carlos Ramos «Tu sabes bem que
eu vou para outra mulher, que eu só faço o que ela quer...». A mulher,
cheia de uma compreensão indistinguível da santidade, vê-o da janela,
coração a sofrer de amor e de piedade, e apenas lhe pede («com carinho»)
que não venha tarde, «sabendo que ele vem sempre mais tarde». É este o
machismo estritamente português, a meio-caminho entre o «Desculpem
qualquer coisinha» e o «Era uma vez um rapaz». Nunca diz, à castelhana,
«Quero e posso!»; nem disfarça, à italiana, dizendo «Posso mas não
quero». Não. Diz, muito à portuguesa «Não quero, mas o que é que tu
queres?, é o que posso...». O homem português nunca tem culpa.
Arrepende-se sempre, mas não tem culpa porque não consegue deixar de
fazer (por muito que não tente) as coisas que lhe apetece imenso fazer. A
mulher, em contrapartida, tem quase sempre culpa. Tem, por exemplo, a
culpa de atrair o homem, não porque o queira atrair (o querer ou não é
irrelevante), mas, simplesmente, porque é mulher, e ele é homem, e não
há absolutamente nada a fazer...
O machismo português não é afirmativo e orgulhoso frente à mulher. É um
machismo conjuntivo -- «Eu bem gostaria de ser fiel, mas...», ou «Eu bem
gostaria de passar mais tempo em casa, mas...», ou ainda «Eu bem
gostaria de não ser como sou, mas...». É esse «mas» que torna o machismo
português diferente -- não é tanto de macho como de «mas», não é tanto
um autêntico machismo como um masismo. Ele não é senhor do seu destino,
como ela é do dela (e do dele). As coisas acontecem-lhe, ele bem tentou;
foi uma coisa que lhe deu, ele nem sequer deu por ela, e, pronto, «o
que é que tu queres, filha?», aconteceu...
A relação entre o homem português e a mulher é vista (pelo homem), como a
relação que tem cada um com a sua consciência. E, ao passo que cada um
pode andar na boa vai-ela (e depois penitenciar-se), o mesmo não se
imagina (nem consente!) à consciência. E, o mais engraçado de tudo, é
que a mulher que «sabe tudo», até isto sabe. Ou seja: sabe perfeitamente
que esta do «Tu sabes bem...» é pouco mais que uma excelente treta que
os homens propagam para poderem pensar que se divertem mais do que as
mulheres. O que torna a mulher portuguesa ainda mais superior. Claro.
Tudo isto para regressar, sem dor, à questão dos palitos. A tese
central, criação única do machismo português, é esta: É muito fácil pôr
os palitos a um homem (basta a mulher olhar para outro), mas é quase
impossível pôr os palitos a uma mulher (porque nunca se consegue enganar
a consciência). Um homem pode ser, por dá-cá-aquela-palha, um «corno
manso», o que é muito pior que ser um corno selvagem ou só
semicivilizado. Mas não existe, na língua, correspondência para o sexo
feminino. Os palitos são uma coisa terrível que as mulheres podem pôr
aos homens mesmo sem chegar a pô-los; mas que os homens nunca podem pôr
às mulheres, por muito que lhos ponham. Nesta vantajosa lógica, bastante
mais complexa e respeitosa do que aquela que anima outros machismos
menos atlânticos, se encontra a alegria e a tristeza do autêntico macho
português -- aquele que vem sempre mais tarde, mas cada vez mais
cabisbaixo.
Miguel Esteves Cardoso, in 'A Causa das Coisas'